sexta-feira, 31 de maio de 2013

O Quarto Íniquo


Esses dias eu estava no meu banheiro matando o tempo tentando ouvir os lamentos e os pedidos de socorro deles do outro lado da membrana que nos separam daquele lugar onde nossas leis não se aplicam, como sempre faço quando estou com tédio. Aí notei que a face que se esconde atrás da minha estante queria falar comigo. 

Quando empurrei o móvel para o lado, ela sorriu com seus dentes amarelos e sua expressão deformada e disse.

“Já faz tempo que não conversamos, mais você lembra da coisa. Pois é, a coisa finalmente pegou sua mãe, quando ela passava no lugar de sempre.”

Eu fiquei meio bravo pois sempre disse para minha mãe não passar por aquele atalho quando tivesse voltando do serviço justamente por causa que a coisa se escondia lá. Na arvore, em baixo dos carros, no buraco do muro. A coisa sempre ficava espreitando quando ela passava lá. 

Quando minha mãe chegou e trouxe meus alimentos, notei que ela tinha um sorriso estranho no rosto. Não era um sorriso de alegria, ou de algo engraçado. Era vazio como quem guarda em si o vácuo de uma vida apagada. E de alguma forma, reconhecia em seus olhos, no fundo o machucado da alma. Talvez fosse por lá que a coisa entrou. 

“Vou dormir mais cedo hoje, estou muito cansada. Não esqueça de pôr o cachorro para dentro, ele fica assustado com seu irmão andando em volta da casa de noite.” 

Tirando o fato de dormir cedo, a parte do pôr o cachorro era sempre a resposta robótica dela, besteira de mãe, claro, meu irmão nunca andava em volta da casa, foi justamente por isso que eu coloquei ele no quarto lá do fundo onde guardo meus pensamentos e incertezas. Todos temos um quarto para isso, guardamos coisas que não jogamos fora, e também as anomalias que encontramos eventualmente. Eu pessoalmente não gosto muito de ir lá. Depois que fui carregando ele com coisas, não se pode mais ver o fundo, parece que o escuro não tem fim, e muito, mais muito longe dá para ver pequenos pontos de luz, eu acho que são estrelas, mas tenho medo de tentar alcançar pois não quero perder a porta. 

Voltei para meu quarto e perguntei para a face por que a coisa havia vindo para casa, e se ela ia ficar na minha mãe por muito tempo.

“Ela veio pois quer conhecer você melhor, e quer que você entenda ela. Provavelmente ela irá sair da sua mãe esta noite e tentará fazer contato.”

Fiquei deitado na minha cama olhando para o teto. Não gosto de fechar os olhos até eu dormir por exaustão, pois quando você fecha seus olhos, imediatamente centenas de outros olhos se abrem para lhe observar, e isso me incomoda um pouco. Ainda mais por ter se tornado bem mais frequente depois de deus ter ido embora. 

Minutos depois eu acordei e me dei conta que a porta do quarto estava aberta. E uma pequena e fina nevoa formava uma linha. Obviamente eu deveria seguir. Ela seguia pelo corredor e descia a escada, no caminho passei pelo quarto de minha mãe, ela estava de fato cansada pois pelo visto dormiu antes de colocar a metade de baixo de seu corpo sobre a cama. 

Depois de passar pela cozinha me dei conta para onde a nevoa estava me levando. Fiquei irritado com isso, seja lá o que ela queria me mostrar, não devia levar para meu quarto de anomalias. Ainda mais por a porta estar aberta! Aquela porta só pode ficar pouco tempo aberta, se não as dúvidas escapam, e meu irmão fica chateado por isso, ele não gosta de ser perturbado sem necessidade depois que o guardei lá; O que é compreensível pois é difícil se desprender da realidade quando se é jogado no poço do infinito, ainda mais se os ecos da vida ainda chegam até você. 

Enfim, entrei para ver o que queriam. Dei alguns passos pelo quarto escuro, e lá a nevoa sumia. Mas eu sentia ela, a coisa. Tive que andar um pouco mais a fundo para começar a ver sua forma surgindo a frente. Ela estava em um canto, tremendo. Era a primeira vez que eu a via. Do jeito que eu a visualizava era como minha mente limitada podia processar, pois a coisa não é daqui, nem deveria estar aqui. 

Possuía um corpo de um aracnídeo e sua cabeça se assemelhava ao crânio de um bode. Em uma das orbitas oculares havia um olho com três íris, e na outra, apenas vazio. A coisa me observava encolhida. Tremendo. Me perguntava o que fazer quando ouvi um grito de criança. Era um grito que misturava ódio e medo como quem acusa alguém de quebrar a lei mais básica e cometer a maior maldade. Desespero e fúria. Junto com o grito o barulho da porta se fechando violentamente. Me virei por instinto e vi que a luz do corredor não estava mais lá. Eu estava preso no quarto dos fundos. Me virei novamente para a coisa, e em vez de estar no canto encolhida, ela estava na frente do meu rosto.

Agora eu entendo o porquê ela veio. Quando o universo começa a dar defeito, ela aparece. Não são todos que podem ver, mas todos sentem de alguma forma. Ela veio até mim pois quer minha ajuda para espalhar o propósito. Estranho pois eu achei que ficaria preso para sempre no quarto. Vaguei por eternidades procurando uma porta. Mas evidentemente apesar de antes duvidar eu encontrei uma.


Afinal, estou falando com você agora, não estou?

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