terça-feira, 4 de março de 2025

Além da Cachoeira Reversa

Havia uma lenda sobre cinco amigos de certa tribo. Todo ano, na noite de eclipse em que o céu fica vermelho, os mais velhos diziam que não se podia sair de dentro da cabana nem vagar pela floresta. Os cinco jovens amigos ignoraram os avisos, cheios de curiosidade e sonhos de feitos heróicos, e se aventuraram em meio à mata. Passaram por um túnel que nunca haviam visto que descia à parte mais baixa da floresta... E nunca mais voltaram. Eram os índios Ari, Indaia, Ube, Nanam e Baobao

Do outro lado eles agora estavam em outro lugar... Um mundo estranho que os amigos chamaram de “sempre-noite”. Onde a lua não se movia no céu. Os amigos se armaram de confiança, pois possuíam machadinhas e arcos para enfrentarem o que fosse.

Era impossível voltar por onde vieram. O túnel virava um escorregador íngreme. Baobao insistia que haviam chegado ao mundo espiritual. Ube que estavam no mundo dos pesadelos. Ube tinha um pé no mundo espiritual, ouvia uivos e sussurros distantes desde criança, se aquele fosse o mundo espiritual ele saberia.

Não haviam animais lá, pelo menos nenhum animal comum. A natureza ali possuía fenômenos próprios. Curiosamente muito tempo se passava, mas a fome que surgia na mesma velocidade sumia.

Uma flecha voa cortando o escuro, fincando sua ponta afiada no ombro de Nanam, com uma ferida profunda. O susto acordou Ube de sonhos distantes. Os jovens se entreolham preocupados, enquanto limpam e fazem um curativo no amigo. Ari estava um pouco mais a frente do grupo e passou pela sua cabeça se os amigos fariam tudo àquilo por ele. Para a surpresa de todos algo chocante acontece depois. A ferida não inflamou e o sangue pára de fluir. Poucas horas depois o amigo já consegue se mover sem problema. Nanam agora está convicto que estão no mundo espiritual. De onde veio a maldita flecha?

Ari tinha um problema na mão direita e por isso não podia esticar totalmente os dedos desde que era menino “curumim”. Compensava com inteligência e astúcia, além da força no braço esquerdo. Sentiu um toque amigo no seu ombro. “Devemos permanecer juntos e de ouvidos abertos” Era Ube. “Você acredita em destino escrito pelos deuses, certo?” Falou com um sorriso. Ari suspirou, conseguiriam sair dali com certeza!

Não se sabe quanto tempo passou. A floresta estava cheia de constantes silhuetas e sons de luta ecoando ao longe, que tornavam o percurso extremamente estressante. Membros de outras tribos também estariam perdidos por aqui?

Em uma clareira eles encontram três estranhas figuras. Eram índios anciãos. Todos envoltos em longas vestes, apenas com os rostos visíveis. Um deles se adianta e conta a eles lentamente:

“Tanto tempo passou... As noites são uma aranha balançando no escuro em uma noite sem vento, segura apenas por um fio... Todos se perderam... Talvez vocês sejam aqueles que conseguirão... Não recuem jamais, atravessem o córrego de águas vermelhas... Subam a cachoeira Invertida... Vençam os desafios... Passem as ruínas... Superem a tentação e não leiam a inscrição... Sigam a flecha que voa de costas... Na grande árvore façam silencio até ver o gavião que segura a flecha... Continuar... Duvidar...”. O ancião parecia confuso por alguns instantes e então silenciou.

Os cinco amigos prosseguem. Poucos metros dali pulam sobre o estranho córrego vermelho.

Chegam na impressionante cachoeira cujas águas fluem rio acima, vêem uma bruxelante claridade que vêm lá do alto a e decidem prosseguir, escalando sua encosta.

Lá em cima há uma grande fogueira. Nela, pilhas de corpos chamuscados. Há dois guerreiros mascarados sanguinários cobertos com sangue seco. Os dois demônios possuíam monstruosas lâminas de metal no lugar de uma das mãos e atacam uivando, enlouquecidos.

Os amigos conseguem vencer em um violento combate com muito custo. Apenas Ari, Ube e Baobao sobrevivem ao combate.

Baobao não deixou que vasculhassem os corpos “O Jurupari se dividiu em dois para testar nossa coragem, se mexermos neles seremos amaldiçoados”

Pouco tempo depois eles encontram ruínas metálicas muito estranhas, provavelmente coisa antiga dos homens brancos. Havia algo escrito em uma pequena placa de metal, com aspecto antigo. Apenas Ari consegue entender as letras dos homens brancos nela. Os amigos lembram as palavras do estranho ancião e decidem por não ler a placa, mas a levam.

Procuram por pouco tempo até encontrarem a silhueta que passa chacoalhando pelos galhos das árvores. Era a flecha que voa de costas. Demorou certo tempo para encontrar o caminho, mas os amigos memorizaram os farfalhar da flecha voando.

“São sempre os mesmos ciclos” Ube diz. “Amanhã como ontem”.

Ari sente como se a placa o chamasse. Certa noite, longe dos outros, ele não resiste e a lê.

Os amigos finalmente chegam à grande árvore. Ali encontram, chocados, corpos. Pilhas e pilhas deles caídos à beira do riacho. São os corpos deles três. Poucos corpos de Ari, muitos de Ube e Baobao. Todos praticamente idênticos, com expressões de horror e feridas de batalha. É esse riacho que encosta abaixo torna-se o córrego vermelho, com a sangue derramado deles mesmos.

Todos estão muito nervosos. Os três amigos discutem. Ari decide mostrar e placa dos homens brancos e dizer seu significado, ou o que o jovem conseguiu tirar dele, em voz alta:

“Continuar o experimento dará errado. Mil ciclos adicionais serão necessários para esfriar o núcleo.” Abaixo do texto há um desenho de um pêndulo estilizado, como se fosse para frente e para trás...

Após tempo de discussões Ari parece enlouquecer e saca sua machadinha, como se possuído por um espírito mau. Diz que aquele é o mundo dos mortos, que os corpos são mais ilusões feitas de reflexo das águas e que de acordo com a mensagem continuar é um erro, apenas o mais forte deles irá conseguir sair dali e se juntar aos deuses, após matar mil cópias falsas.

Ube saca seu arco e flecha e atira contra ele, mas erra e sua flecha voa acertando uma árvore mais distante. Ari, irritado, salta em sua direção com fúria. Em seus últimos momentos, para o choque de Ari, ele poderia jurar que Ube morreu com um sorriso no rosto.

Ari, ainda coberto de sangue, descansa sobre os corpos dos dois amigos. Pouco tempo se passa. Um farfalhar próximo. São os três amigos saindo novamente em direção à grande árvore. Ari, estupefato, cruza olhares com si mesmo e sua mente dá um estalo. Ele decide só confiar em si mesmo.

Parte para atacar Ube e Baobao. Sua contraparte fica imóvel todo o tempo. Após matar os amigos pela segunda vez senta e discute a mensagem da placa com o novo Ari, agora entende que aquele Ari também já leu a placa escondido horas antes. Os dois puxam a placa e mostram ao outro. É a mesma placa. Loucura do mundo dos mortos. Como algo que é um pode ser dois?

Poucas horas depois mais três versões dos amigos chegam. Os dois Ari agora juntam-se e matam rapidamente Ube e Baobao. O terceiro Ari ouve toda a explicação em silêncio. Concordando.

Mas algo muda. Após poucas horas o próximo grupo de três chega, mas dessa vez o quarto Ari não aguarda em silêncio, nem concorda com tudo aquilo. Ele luta ao lado de Ube e Baobao. Morre após muito esforço. Os três Ari se entreolham, pensativos.

Mais algumas horas, mais um grupo dos três aparece. A história se repete, o quinto Ari também não trai os companheiro, os três primeiros Ari têm grandes problemas, e conseguem vencer, mas agora estão preocupados. O que mudou? Porquê os novos Ari não conseguem entender?

Os três jovens Ari conversam e agora decidem que permanecer ali não seria vantagem, e decidem seguir por caminhos diferentes.

Um dos Ari decidiu seguir em frente e observa, surpreso, que a flecha que Ube disparou antes voou e fincou em uma árvore, bem abaixo de uma grande mancha na madeira que parecia um gavião. Aquilo trouxe uma lágrima ao rosto do jovem “devíamos ter silenciado como o ancião pediu... O gavião que segura a flecha estava tão perto”

Poucos momentos depois, como que por mágica, a flecha na árvore estala, sai de onde estava na árvore voando de costas de volta à escuridão da floresta. Em breve ela guiará o próximo ciclo.

Finalmente entendeu a mensagem. Não estão no além. Os homens brancos fizeram alguma besteira e prenderam a floresta nesse “sempre-noite” avermelhada. Aqui os momentos vão e voltam como a aranha balançando na teia sem vento, igual estava no desenho da placa.

Dali de cima ele vê a clareira com a grande fogueira. Os dois Ari chegam ali. Eles pegaram metais nas ruínas dos homens brancos e batem com pedras do rio, moldando o metal em afiadas lâminas. Raspam a cabeça, colocam máscaras improvisadas e usam as lâminas para cortar as próprias mãos direitas. As feridas aqui não inflamam nem dão febre. Dessa forma quando novo grupo chegar não perceberão a identidade dos dois. Em pouco tempo suas mentes regredirão à um estado selvagem e passarão uma eternidade matando seus amigos e a si mesmos, uivando no escuro da sempre-noite.

O jovem decide pegar sua faca e com ela escreve uma mensagem embaixo da mancha em forma de gavião.

“Continuar juntos, não duvidar”

É esse Ari, com a consciência pesada, que descerá a montanha para tentar deixar explicar o que acontece para os amigos. Infelizmente o caminho de volta não é normal e demorará séculos até chegar lá. Ele se tornará mais um dos anciãos, se cobrirá em panos para esconder a mão e as cicatrizes de batalha, conseguindo lembrar apenas momentos chave da jornada.

Porém, antes disso, Esse Ari da grande árvore olha o horizonte e suspira, entendendo que tinha mais uma coisa a fazer. Ele teria de ter mais fé. Ali, do alto da monte dispara uma flecha para baixo, flecha essa que viaja grande distância.

Dessa vez um Ube sonhador pega a flecha no ar com grande proeza para a surpresa de um assustado Nanam ao seu lado. “Pelos deuses, quase me acertou no ombro!”

Pegar a flecha trouxe à Ube um sorriso no rosto e uma lembrança da infância. Os amigos não teriam como saber, mas certa vez quando curumim teve um sonho que os deuses lhe enviaram uma flecha e ele a pegava no ar.

Bate no ombro de Ari e comenta apenas a lição da voz do sonho.

Ari, meu irmão, certa vez os deuses me revelaram grande lição em um sonho que não cabe só a mim compreender “Três irmãos fiéis são o suficiente para escapar de um grande buraco. Mesmo quatro desconfiados estão condenados a se afundar nele por todas eternidade”. Ari sorri e concorda. Eles continuam a jornada.