quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Sandman

A verdade é que meus pais me obrigaram a ir para o acampamento de férias, e o resultado não poderia ter sido pior. Havia aquele garoto terrível, Bradley, que costumava me atormentar todos os dias durante a aula. Agora eu tinha tido o azar de ficar no mesmo quarto que ele durante o acampamento.

Mas, veja bem, o que tornava Bradley um garoto tão indesejado eram suas brincadeiras sem graça. Todo dia eu tinha que conviver com o medo de chegar na aula e me deparar com uma armadilha, uma humilhação, uma piada sem graça. O porte físico não era seu forte. Ele era um magrelo delinqüente. Já ouvi antes que seus pais são separados e ele tem desvios de caráter, ou alguma porra zoada assim, mas sei que se a vida dele é uma merda, ele resolveu tornar a dos outros também.

Todos os alunos dormiam em quartos distribuídos dentro de um grande chalé durante o acampamento. Naquela noite meu azar foi duplo pois acabei ficando só eu e Bradley, no último quarto do chalé, que ficava no fundo. O único quarto que tinha uma grande e sinistra janela de frente para nossas camas.

Eu sempre tive muito medo de espíritos e coisas assim, e Bradley sabia disso. Então ele me obrigou a passar a noite escutando as histórias de terror dele, até altas horas. Eu tentava ficar de ouvidos fechados e dizia para ele parar. Mas aquilo só o deixava mais agitado. Histórias de criaturas que devoravam os homens enquanto dormiam, histórias de espíritos que atravessavam sua cama e puxavam a criança para o outro mundo, onde sugariam sua alma.

Em certa altura, sem agüentar mais aquilo disse “Pare, Bradley, se continuar desrespeitando esses espíritos vai acabar ficando amaldiçoado”.

Ele abriu um grande e estranho sorriso

“Amaldiçoado? Isso me lembra uma história... Você conhece a lenda do Sandman?”

Tentei não ouvir, mas suas palavras ecoavam alto no escuro do chalé, iluminado apenas pela luz fraca da lâmpada antiga no teto.

“Os antigos peregrinos contavam que existia um espírito maligno que vagava pela terra, em busca dos olhos que ele não tinha mais. Ele vagava à noite, e pegaria qualquer criança incauta que não gostasse de dormir cedo. Ele possuía uma sacola de areia mágica, que bastava que atirasse um punhado de areia na criança, ela dormiria um sono profundo. Tão profundo que nem perceberia seus olhos serem arrancados devagar de suas órbitas. Os peregrinos diziam que a substância amarelada e arenosa que aparece nos olhos toda manhã é a areia que o Sandman jogou. Um aviso. Para que sabíamos que ele nos vigia durante o sono.”
Eu já estava assustado o suficiente, mas ele continuou.

“Mas o que a maioria não sabe é que os peregrinos eram uns frutinhas... Essa merda toda de Sandman é um grande conto de fadas. O verdadeiro Sandman era um deus cultuado pelos antigos indígenas da América, em florestas hoje invadidas, como essa em que construíram esse chalé aqui. Os indígenas ofereciam a ele sacrifícios de animais e mulheres porque só eles sabiam a verdade.”

Seus olhos se arregalaram.

“Não existe porra de aviso nenhum, mais cedo ou mais tarde, todos os humanos vão para a escuridão, vão para os braços de Sandman”

Assim que ele terminou a história tive um pressentimento terrível.

Brad estava de costas para a janela falando comigo, mas havia algo nela.

Então eu vi. Um rosto na escuridão do lado de fora.

Um rosto terrível e inumano. Sua face branca tinha linhas duras e esticadas, seus olhos eram dois buracos vazados de onde se via a noite.

Bradley continuou falando, mas eu estava paralisado de medo, até que consegui, em um movimento lento, apontar com o dedo para a janela.

Bradley caçoava de mim e ria, mas quando virou de costas e encarou aquele rosto terrível começou a gritar como um louco.

Aquela face branca se contraiu em um sorriso cheio de rugas, como o de um velho cruel. Em seguida simplesmente andou devagar para trás, até desaparecer completamente na escuridão.

Estávamos completamente imóveis. E ficamos realmente assustados por um tempo, mas Brad começou a rir e dizer que aquilo tinha sido uma pegadinha, feita usando uma máscara por de um de seus colegas.

“Pareceu bem real para mim” eu disse, mas ele continuou me chamando de covarde. Ele era tão idiota. Não pude contar a ele.

Que quando o rosto apareceu àquela hora, eu também vi uma mão branca aparecer na janela. Mas apenas a esquerda. E quando ele foi trocar de camisa eu vi horrorizado. Uma mancha roxa nos seus ombros, em forma da palma de uma mão direita.

Talvez medo, talvez vingança. Não consegui contar aquilo à ele. Não lembro direito o que aconteceu depois. Ele continuou contando suas histórias noite adentro e acabamos indo dormir.

Só fui entender depois o motivo de não lembrarmos.

Bradley acordou. “Achei que era de manhã, por que está tão escuro?”

Após ouvir isso eu acordei, mas ao olhar para ele gritei por socorro.

“Porquê está gritando? Que líquido quente é esse que molhou minha mão? Vamos, deixe de brincadeira, ligue a luz”

Mas Bradley demorou demais a entender.

A luz não estava desligada.


Então Bradley começou a gritar.

Suas mãos lentamente tatearam por seu rosto, e ele sentiu seus dedos afundarem nos buracos vazios das órbitas de seus olhos.

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